O papel da industrialização na formação socioespacial do país

Tese de doutorado desenvolvida na Unicamp analisou a relação entre a legislação do trabalho e a industrialização no Brasil

Pesquisa desenvolvida no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp enfatiza os marcos históricos da industrialização, a partir de 1930, e sua relação com a exploração da força de trabalho. Os achados fazem parte da tese de doutorado defendida pelo geógrafo Flávio Lima, a partir de questionamento de elementos que constituíram a industrialização brasileira. Para tanto, o pesquisador apoiou-se na noção de formação socioespacial, do geógrafo Milton Santos, que leva em consideração questões sociais e sua relação com o espaço.

Lima fez da exclusão de uma parcela de trabalhadores – a maioria negros – da regulação imposta pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943, uma questão-chave de sua tese, que avança até a institucionalização de relações precárias do trabalho, expressas na Contrarreforma Trabalhista de 2017 e na alteração dos marcos regulatórios do trabalho realizada no mesmo ano e instrumentalizada pela Lei 13.467.

Indústria têxtil

A indústria têxtil mereceu especial ênfase na tese por sua relevância histórica, espacial e econômica. Um dos embriões da industrialização no país, essa indústria tem sua origem ligada às fábricas instaladas no século XIX, no Nordeste, onde se concentrava a maioria das plantações de algodão. Nessa região, destaca Lima, a mão de obra escravizada sustentou inicialmente a produção. Mais tarde, acabou preterida em nome do trabalho assalariado, em meio a um projeto político eugenista. Em 1912, 60% dos trabalhadores do setor têxtil eram migrantes europeus.


Continua depois da publicidade


Houve nova exclusão da parcela marginalizada da população também no caso dos marcos regulatórios do trabalho de 1943. “A sistematização desses marcos ocorreu de maneira peculiar: excluiu do quadro institucional o conjunto de trabalhadores disponíveis para vender sua força de trabalho no contexto exploratório do meio urbano-industrial, ao mesmo tempo que os incluiu nos processos de produção – parcela deles realizada fora dos espaços fabris tipicamente industriais e sem direitos trabalhistas”, explica o pesquisador.

Flexibilização de marcos regulatórios

Apesar de a flexibilização do trabalho ter chegado ao ápice com a contrarreforma do governo Michel Temer, Lima enfatiza que uma importante mudança nesse sentido ocorreu na ditadura, por meio de um ataque sistematizado ao trabalho, apontando a criação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), em 1966, como um exemplo desse processo.

Segundo o pesquisador, a constituição desse fundo, associado ao trabalho, foi paradigmática pois desempenhou duas funções na expansão da industrialização brasileira: por um lado, modificou as relações de trabalho ao alterar a importante estabilidade decenal; por outro, arrecadou e, posteriormente, transferiu recursos provenientes do trabalho para o Estado e, por extensão, para o desenvolvimento do capital.

Para Lima, essa questão e a exclusão de trabalhadores da CLT “indicaram que as políticas industriais – e as políticas econômicas associadas – estão intrinsecamente ligadas às políticas do trabalho e que todas condicionam e moldam a produção realizada no território brasileiro”.

Para a orientadora da tese, professora Arlete Moysés Rodrigues, a análise sobre a relação entre a legislação do trabalho e a industrialização, com ênfase no FGTS, na CLT e nas modificações por que passaram, está entre as principais contribuições da tese de Lima. Além disso, Rodrigues chama atenção para a questão das relações de trabalho cada vez mais informais – em especial no ramo das confecções – e sua conexão com o avanço do neoliberalismo.

Na medida em que a tese também buscou enfatizar uma lacuna da questão da industrialização e do trabalho no que se refere a especificidades do Brasil, a professora também indica que a pesquisa “resgata como as análises em geral, calcando-se no processo de industrialização ocorrido em outros países, deixam de revelar as condições internas do processo de industrialização brasileiro”.

Da concentração à pulverização

Em relação à formação socioespacial brasileira, tema abordado na pesquisa, valendo-se de uma categoria elaborada por Milton Santos, o geógrafo buscou questionar como a industrialização se desdobra no espaço.

Percorrendo os períodos históricos da expansão industrial, Lima discute a reorganização dos espaços fabris a partir de 1985. Se entre as décadas de 1930 e 1980 houve uma política de concentração industrial, tal característica começa a mudar no final do século XX, quando surge o modelo das microproduções regionais vigente hoje em dia.

Criticando a tese de uma suposta desindustrialização do Brasil, principalmente pelo fato de esse viés analítico levar em consideração apenas sua dimensão econômica, o pesquisador indica que o que está em curso atualmente é um processo de transformação da própria lógica da produção industrial, algo que se revela, por exemplo, na pulverização da produção, que vem ocorrendo em todo o território brasileiro.

“Desse modo, a casa – que era unicamente a morada das classes trabalhadoras – aparece, também, enquanto espaço de produção e trabalho adicionais, necessários aos processos produtivos, mas onde se trabalha por baixas remunerações e, quase sempre, sem direitos. Isso repercute diretamente nas condições de reprodução da vida das classes trabalhadoras”, finaliza Lima.