A indústria aeronáutica tem sido pressionada pelas agências regulamentadoras de aviação a reduzir os níveis de ruído gerado pelas aeronaves que fabricam, de modo que, até 2030, não seja mais possível ouvir fora do perímetro aeroportuário o ruído de um avião ao decolar ou aterrissar.
Uma das soluções para esse problema foi encontrada por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) nas asas de corujas (Strigiformes).
Ao estudar a aerodinâmica do voo da ave, considerado o mais silencioso, os pesquisadores do Laboratório de Ciências Aeronáuticas da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) da Unicamp, em colaboração com colegas do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e da Universidade Lehigh, dos Estados Unidos, identificaram características nas asas da coruja que, mimetizadas nas asas de aviões, possibilitam projetar aeronaves mais silenciosas.
“Desenvolvemos um modelo numérico matemático para simular algumas características das asas da coruja em asas de aviões e comprovamos por meio de experimentos que isso possibilita projetar aeronaves mais silenciosas”, diz William Wolf, professor da FEM-Unicamp e um dos responsáveis pelo projeto do lado do Brasil.
Wolf é um dos pesquisadores principais do Centro de Pesquisa em Engenharia e Ciências Computacionais (CCES) e associado ao Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria (CeMEAI).
O CCES e o CeMEAI são Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs), financiados pela FAPESP.
De acordo com o pesquisador, os aviões possuem diversas fontes de ruídos aerodinâmicos, gerados pela turbulência no escoamento de ar que passa ao redor das asas. A turbulência gera perturbações que convertem a energia da velocidade do ar em ondas acústicas.
Na decolagem, quando a aeronave precisa de potência máxima para alçar voo, a maior parte do ruído é gerada pelo motor. Já durante o pouso, quando a potência do motor é reduzida, as principais fontes de ruídos aerodinâmicos passam a ser o trem de pouso e as superfícies hipersustentadoras, compostas pelas asas, flaps e slats – dispositivos móveis localizados nas asas com a função de aumentar a área de superfície e elevar a sustentação da aeronave.
“O ruído aerodinâmico é causado pela turbulência nesses pontos da aeronave”, explica Wolf.
Nos últimos anos, os novos motores aeronáuticos ficaram mais eficientes e também maiores e com isso tiveram que ficar mais próximos das asas das aeronaves para ficarem afastados do chão. Essa aproximação gera uma interação entre o ruído gerado pelo motor e os bordos de fuga – a parte posterior das asas –, que causa espalhamento acústico e aumenta o ruído das novas aeronaves, explica Wolf.
A fim de encontrar uma solução para esse problema, os pesquisadores estudaram a morfologia das asas das corujas para identificar as características que tornam o voo da ave silencioso, reduzindo o ruído.
Os pesquisadores observaram que as asas das corujas possuem penas aveludadas, com franjas elásticas e porosas tanto na região frontal como na posterior – os bordos de ataque e de fuga –, que quebram as estruturas de turbulência em porções menores, diminuindo o ruído. Além disso, o bordo de fuga é ligeiramente serrilhado, o que também contribui para reduzir o ruído durante o voo.
“Todos esses elementos encontrados nas asas da coruja atuam de forma a reduzir o ruído da ave”, afirma Wolf.
Com base nessas constatações, os pesquisadores desenvolveram um sistema de asa com enflechamento da região posterior – em que a inclinação é voltada para a parte frontal da aeronave. Essa mudança permitiu reduzir o espalhamento do ruído do motor no bordo de fuga, modificando a difração acústica e diminuindo a geração de ruído.
O estudo, apoiado pela FAPESP, resultou no depósito de patentes na Europa e nos Estados Unidos sobre esse novo conceito de projeto de asas silenciosas. Os estudos foram realizados em parceria com pesquisadores do ITA, da Universidade de Poitiers, na França, e da Airbus.
Ruído em trens de pouso
Os pesquisadores da Unicamp também têm desenvolvido projetos nessa área de pesquisa, chamada aeroacústica, em parceria com a Boeing.
Em colaboração com engenheiros da empresa aeroespacial norte-americana eles avaliaram por meio de simulações computacionais e técnicas estatísticas os efeitos da turbulência no trem de pouso de uma aeronave modelo 777, fabricada pela Boeing.
As análises indicaram que as principais fontes de ruído nesse componente são cavidades nas rodas e na fuselagem das aeronaves, usadas para guardar o trem de pouso durante o voo.
“Descobrimos que, sob determinadas frequências excitadas pelo escoamento turbulento, algumas dessas cavidades apresentam efeitos de ressonância que geram um ruído muito intenso e que pode ser extremamente perturbador para o ouvido humano”, diz Wolf.
Para fazer as simulações, que demandaram 7,5 milhões de horas de computação, rodando os dados ao longo de seis meses seguidos, foi usado um supercomputador nos Estados Unidos com 3,2 mil núcleos de processamento em paralelo.
“Foi uma das maiores simulações computacionais já feitas pela Boeing. Uma única simulação gerou 50 terabytes de dados”, afirma Wolf.
Aplicações em outras áreas
As descobertas feitas em estudos de aeroacústica têm sido aplicadas em outras áreas, como na indústria automotiva, de ventilação industrial e em projetos de turbinas eólicas.
A exemplo das asas de aviões, as pás de turbinas eólicas e os ventiladores industriais também são diretamente afetados pela turbulência, tanto na parte frontal quanto na posterior. Neste caso, os bordos de ataque e de fuga geram ruído, conforme observaram os pesquisadores em projetos desenvolvidos em parceria com a General Electric (GE), no caso de turbinas eólicas, e a empresa FanTR, fabricante de ventiladores industriais.
Já em automóveis, a turbulência causa tanto o aumento no consumo de combustível, em razão do aumento de arrasto, como na geração de ruído, que incomoda o motorista e os passageiros.
Esse último problema tende a ficar ainda mais evidente nos próximos anos com o desenvolvimento dos veículos elétricos, autônomos e voadores e, por isso, passou a ganhar maior atenção da indústria automotiva e, no caso dos carros voadores, também da indústria aeronáutica, aponta Wolf.
Com o avanço dos veículos elétricos, que geram menos ruído, a indústria automotiva terá que fazer esforços para diminuir o ruído de outras fontes do automóvel. Já no caso dos carros autônomos, com a menor necessidade de prestar atenção na direção, os passageiros poderão a interagir mais no interior do veículo e se dedicar a outras atividades. “Eles passarão a ser mais sensíveis a ruídos externos gerados pela turbulência”, estima o pesquisador.
Por sua vez, os veículos voadores, com decolagem vertical, devem apresentar altos níveis de ruído. “Se os drones pequenos já apresentam alto nível de ruído hoje, imagine diversos carros voadores transportando pessoas em uma cidade como São Paulo”, exemplifica Wolf.