Notícias
Por dez anos trabalhando e aplicando os conceitos da Manufatura Enxuta ou Lean Manufacturing, em particular a técnica de resolução de problemas e a busca da causa raiz, sempre me deparei com uma causa implacável: o erro humano. Este erro na maioria das vezes é usado praticamente como uma desculpa para justificar algo que tenha ocorrido sem que se tivesse avaliado profundamente os motivos que geraram o mesmo, e, nestes casos, são sempre apresentadas soluções-padrão muitas vezes ineficazes, como por exemplo: melhorar as instruções de trabalho e treinar novamente, ou até punir o responsável pelo erro.
Confesso ter utilizado diversas vezes soluções como estas no início de minha carreira quando ainda não tinha conhecimento das técnicas do Lean e acreditava que era impossível evitar o erro humano; e de certa forma tolerava uma pequena parcela de erro. Mas será que ainda assim devemos tolerar os erros?
Para respondermos esta pergunta, vamos analisar um caso ocorrido alguns meses atrás em um hospital de São Paulo: uma menina de 12 anos com os sintomas de uma simples virose perdeu a vida devido a um erro, um lapso de uma enfermeira que aplicou por engano vaselina no lugar do medicamento prescrito; o erro não pôde ser reparado e em poucas horas a menina veio a perder a vida. Então um corriqueiro erro humano definiu o destino trágico desta garotinha; volto a questionar, será que o erro humano é tolerável?
Neste caso um simples erro é inaceitável e é natural pensarmos que foi displicência da enfermeira não executar os cuidados devidos na verificação do medicamento antes da aplicação; mas, por outro lado, devemos avaliar o seguinte: quantas vezes nós fomos ao mercado e acabamos por comprar algum produto por engano devido a sua aparência externa? É um erro tão comum que algumas empresas menos éticas adotam em suas embalagens imagens similares a produtos famosos para se valer deste erro humano.
Por isso antes de continuarmos, creio ser interessante acrescentar uma classificação do erro humano: segundo estudos realizados por James Reason (1990 Cambridge Univ. Press), existem dois tipos de erros, o primeiro refere-se à execução intencional, onde o autor da ação tinha a intenção de realizá-la da forma executada, seja por sabotagem ou por falta de conhecimento da forma correta, e onde soluções como treinamento, instruções de trabalho e medidas disciplinares se aplicam com certa eficácia. Já no segundo tipo, os erros não intencionais, resultados de distração ou esquecimento, as soluções anteriores em pouco ou em nada auxiliam na resolução do problema.
De qualquer forma a enfermeira, que rapidamente se tornou a “vilã” de nosso caso, teve sua carreira destruída, responderá processos por homicídio, poderá ser presa, e além de tudo isso podemos acreditar que este erro marcou a sua vida para sempre e ela carregará o peso deste erro em sua consciência. Então pergunto: teria ela realizado este erro com intenção, seja por falta de conhecimento, seja por sabotagem?
Definitivamente não se trata de um erro intencional, a enfermeira não tinha a intenção de assassinar a paciente e tampouco aplicou a vaselina conscientemente, e sim sem saber as conseqüências de tal infusão. O fato é que ela aplicou a substância assumindo que se tratava do soro prescrito, e fica claro então que este se trata de um erro por distração ou esquecimento.
Assim sendo eu não acredito que neste caso a enfermeira seja culpada e sim vítima na história; eu fundamento minha análise nos detalhes e informações disponíveis na mídia a respeito deste problema. O frasco que continha as duas substâncias eram idênticos, diferindo apenas na informação da etiqueta de mesma cor, além disso o frasco da vaselina estava localizado no mesmo armário que os frascos de soro; e, tudo isso somado a um ambiente estressante e de alto volume de trabalho num hospital muito procurado com grande carga de trabalho sobre seus funcionários, cria um local perfeito para erros e falhas deste tipo.
Treinar, demitir, implantar novas instruções no local de trabalho não evitarão um outro enfermeiro(a) de cometer o mesmo erro, pois com os fatos descritos a impressão que fica é que seria muito mais fácil errar do que fazer a coisa certa, não é mesmo? Tenho certeza que eu cometeria o mesmo erro que a pobre enfermeira, e cabe o desafio, quem não cometeria?
Mas se não devemos tolerar erros humanos, por outro lado devemos entender que errar é inerente ao ser humano, como devemos proceder?
Na minha opinião temos uma tendência a justificar os erros ao invés de abordá-los e tentarmos resolvê-los. É mais simples e rápido acharmos um culpado e nos contentarmos com isso, ainda que a solução do problema resida numa análise simples que poderia evitar o erro por definitivo.
Por isso o convido a uma análise aos moldes do sistema lean iniciando com a técnica dos cinco porques nesta ocorrência:
Por que a menina faleceu?
Devido a enfermeira aplicar por engano vaselina no lugar de soro em seu sangue
Por que a enfermeira aplicou a vaselina por engano?
A enfermeira não leu a etiqueta de identificação do produto
Por que a enfermeira nao leu a etiqueta?
A enfermeira pegou a vaselina e o soro no mesmo armário supôs se tratarem da mesma substância.
Por que a vaselina e o soro estavam no mesmo armário?
A embalagem era exatamente a mesma para os dois produtos e nao permitia uma barreira física para evita armazenagem imprópria
Veja que nossa análise mostra que o fato da embalagem ser a mesma para dois produtos totalmente diferentes acarretou em dois erros: primeiro a localização da vaselina no armário indevido, e, conseqüentemente a aplicação indevida da vaselina na paciente.
Como ambos foram embalados internamente podemos então sugerir que a embalagem é um fator sob controle do hospital e simples de se alterar, então a embalagem é a causa Raiz deste problema.
Como proposto pelo próprio hospital, o uso de cores diferentes para o rótulo permitiriam uma visualização imediata do conteúdo, além disso as embalagens poderiam ser alteradas com a adição de referências ou barreiras físicas que identifiquem o produto e seu local de armazenamento, evitando que estes produtos sejam impropriamente armazenados, ou seja, isto consiste da aplicação de outra técnica lean chamada Poka Yoke (palavra japonesa que significa a prova de erros).
A técnica do Poka Yoke, consiste na idealização de dispositivos simples para identificar e alertar quando algo não está sendo executado corretamente, exigindo uma correção imediata, sendo a forma mais eficaz de se evitar erros humanos.
Dentro da cultura lean, o Poka Yoke funciona também como combustível para o processo de melhoria contínua, sendo dispositivos simples e baratos; as empresas que aplicam o lean motivam seus colaboradores a desenvolverem estes dispositivos por todas as atividades de seu dia a dia prevenindo erros.
Através da técnica Poka Yoke se poderia ir além, e desenvolver Poka Yokes para as conexões com formatos específicos para cada tipo ou família de medicamentos, fazendo com que um médico defina quais os medicamentos e equipamentos médicos com conexões compatíveis apenas com o medicamento prescrito eliminando o risco de utilização de medicamentos errados, entre outros erros humanos relacionados a rotina de um hospital.
Em resumo cometer erros é inerente ao ser humano, mas isso não significa que devemos tolerar e conviver com os mesmos. É possível através de técnicas Lean, como Poka Yoke e Gerenciamento Visual, identificar e corrigir erros humanos na origem antes que afetem seu processo gerando um ambiente com 100% de qualidade, utilizando recursos existentes no processo e a inteligência de todos os colaboradores de uma empresa, sem investimentos maciços em equipamentos sofisticados e complexos de inspeção de qualidade.
*Renato Eiji Kitazuka, engenheiro mecânico, associado a Honsha. Iniciou sua carreira na Toyota do Brasil e construiu sua especialização em Lean/TPS durante praticamente 10 anos implementando seus conceitos na Toyota e em seus fonecedores.
Gostou? Então compartilhe:
Faça seu login
Ainda não é cadastrado?
Cadastre-se como Pessoa física ou Empresa