Fonte: Envolverde (www.envolverde.com.br) - 12/03/07
Antes fabricava minas terrestres para conter o avanço do exército na guerra civil de El Salvador (1980-1992). Hoje, o ex-guerrilheiro Félix Vasquez, ou “El Rocketero”, como era chamado quando militava na então insurgente Frente Farabundo Martí para a Libertação nacional (FMLN), devido às suas habilidades para fábrica artesanalmente armas do tipo “rocketes”, diz estar convencido de que a produção de biogás, ainda que em pequenas quantidades, contribui para deter o crescente desmatamento e reduzir os gastos diários de famílias camponesas.
“Essa mesma intenção que tínhamos antes, de alguma maneira era (fabricar uma ferramenta) para matar alguém, ainda que fosse em defesa própria, hoje nos serve para resolver o problema do meio ambiente e a situação econômica familiar”, disse a IPS este homem de 42 anos, enquanto caminha pelo quintal de sua casa onde, ao lado de galinhas e porcos, planeja instalar sua “máquina” de produzir biogás. Vasquez, de roupas simples e conversa agradável, apenas havia completado a quarta série do ensino fundamental antes da guerra. Reconhece que no começo “não sabia de nada” sobre o assunto, e que só depois da assinatura dos Acordos de Paz de 2002 voltou a estudar e viu ressurgir seu interesse pelas fórmulas químicas.
Hoje em dia é um tenaz promotor do biodigestor, a “máquina” que produz biogás. Seu projeto imediato é terminar de instalar um nos fundos de sua casa. O biogás é obtido da fermentação de dejetos orgânicos, excremento de vaca, porco ou galinha, embora o esterco suíno gere muito mais metano. Não requer maiores conhecimentos técnicos ou investimentos onerosos, os quais não passam de US$ 300, e, além disso, se produz de forma artesanal, na própria casa, sem que represente perigo para a saúde ou emane mau cheiro, enquanto reduz os gastos familiares com o consumo de gás convencional.
Como explica o Serviço Evangélico para o Desenvolvimento do Chile (Sepad), “o biogás é gerado através da decomposição da matéria orgânica. É um processo natural que ocorre em todos os âmbitos onde existe decomposição de biomassa, em um entorno e sem oxigênio, através da atividade bacteriológica”. Quanto mais alta a temperatura, maior decomposição e, portanto, mais gás é gerado. A produção deste combustível acontece utilizando um biodigestor ou recipiente, que pode ser um poço de cimento coberto com polietileno escuro, ou vários barris presos um ao outro, que permitam conservar o calor.
A este recipiente é adaptada uma fonte de recarga (barril) conectada por um tubo ou mangueira pelo qual, usando um êmbolo, alimenta-se com o esterco diluído em água. O biodigestor possui canos galvanizados e tubos de PVC (policloruro de vinil) pelos quais o biogás é transportado desde o termina de descarga (outro barril) até à estufa, processo que é regulado por meio de várias válvulas. Embora a biodigestão tenha encontrado seu auge na América Latina nas últimas décadas, existem registros indicando que em 1600 foi gerada pela primeira vez gás proveniente da decomposição orgânica e que em 1890 foi construído na Índia o primeiro artefato para sua produção.
Porém, foi na Inglaterra, seis anos mais tarde, que o biogás foi usado para produzir eletricidade destinada à iluminação pública. O Sepade também lembra que, ao contrário do que se pode pensar, a atividade agropecuária é responsável por 30% das emissões de metano, o segundo gás, depois do dióxido de carbono, causador do aquecimento global. “A solução para este problema é a incorporação da biodigestão à atividade agropecuária, já que com esta tecnologia se consegue benefícios ambientais: reduz a contaminação ambiental e produz energia renovável”, por isso estima-se que essas “máquinas” serão “imprescindíveis” no futuro, diz o artigo “Sepade contará com o primeiro biodigestor destinado a produzir eletricidade”.
“Ao contrário das técnicas que o engenho humano desenvolveu, a natureza não reconhece desperdícios”, diz o especialista argentino Roberto Montanaro em seu artigo “Produção de biogás”, publicado no site da Internet em Engormix, a comunidade Internacional de Negócios Relacionados com a Produção Animal. Atualmente, a biodigestão é utilizada para produzir energia elétrica e térmica em grandes centrais, como ocorre no Chile e na Costa Rica. Outros projetos de biodigestores também são implementados na América Central.
Em El Salvador, vários moradores de Santa Bárbara, povoado de aproximadamente dois mil habitantes na província de Chalatenango, já produzem biogás utilizando o modelo de estufa que requer menos lenha, cuja produção afirmam ter diminuído o consumo desta em 50%. José Luis Guerra é um dos moradores que construiu seu próprio biodigestor no quintal de sua casa com vários barris presos uns aos outros. Para fazê-lo funcionar necessitou de 24 carrinhos com 28 litros de esterco, diluídos em 72 litros de água, isto é, proporção de três para um.
Depois de oito dias, Guerra obteve sua primeira produção de biogás de uma estufa de três queimadores. “Isto nos beneficia muito, queremos trabalhar mais para ver se chegamos a produzir metade do que precisamos”, disse Guerra, enquanto Maribel, sua filha de 9 anos observa sua mãe, Maria Rosalina, lidar na estufa para demonstrar que seus esforços renderam fruto. A família reduziu em um terço o consumo de gás propano.
Juan René Guzmán, funcionário o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), explicou à IPS que a iniciativa, que começou há um ano, tem a intenção de sensibilizar os moradores da região para as vantagens da produção de energia renovável com biodigestores, e o uso das chamadas estufas melhoradas, que precisam até de 90% menos de lenha do que as tradicionais. “Temos conseguido bons resultados e benefícios adicionais em matéria de saúde”, afirmou Guzmán, coordenador nacional do Programa de Pequenas Doações, que tem como teto aproximadamente US$ 25 mil por ano para implementar a iniciativa.
Guzmán explicou que “estes projetos não são da Organização das Nações Unidas, mas das comunidades”. O que o programa faz é “apoiar iniciativas geradas por outros organismos ou moradores”, facilitando sua participação na promoção dos biodigestores e das estufas melhoradas, com uma visão integral, que inclui fortalecimento de capacidades, desenvolvimento democrático, educação sobre meio ambiente e promoção da saúde.
O projeto, que tem “apoio” do governo salvadorenho aprovou a instalação de seis biodigestores e cerca de 40 estufas que, usados de forma adequada e com efeito multiplicador nos habitantes de Santa Bárbara, espera-se que dêem resultados positivos e ajudem o desenvolvimento sustentável, já que “nossos agricultores possuem a matéria-prima para o biogás”, acrescentou.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação. El Salvador é o país centro-americano que “apresenta uma das condições ambientais mais deterioradas: 2% do território coberto por florestas naturais secundárias e mais de 75% dos solos experimentam algum grau de erosão, causada por desmatamento, urbanização e concentração de populações”.
De acordo este documento intitulado “Avaliação de produtos florestais não madeireiros na América Central”, a lenha representa 92% da geração de energia consumida no campo de El Salvador, e entre 51% e 69% no total do país, o que, junto com a expansão da fronteira agrícola aumenta o desmatamento a uma média estimada de 4.500 hectares por ano.
No final da década de 90, este país aparecia como o segundo mais desmatado da América Latina, só atrás do Haiti, segundo o funcionário do Pnud. Entretanto, Vasquez reclama que, apesar de ter demonstrado os benefícios do biogás, “não há apoio estatal para o experimento em busca de energia alternativa. Por isso não produzimos biogás em grandes proporções”, disse, acrescentando que, no caso de não agir com responsabilidade de forma imediata, este país ganhara o vergonhoso “prêmio de desmatamento”.