Como Cingapura se transformou no país mais inovador da Ásia

Uma ilha de 719 quilômetros quadrados, do tamanho da cidade de Salvador, castigada, 365 dias por ano, por um calor inclemente e uma umidade média de mais de 80%. Uma terra onde nada dá e até a água é importada. Um país de apenas 54 anos. Pois bem, lá pulsa uma das economias mais vibrantes do mundo: a mais inovadora da Ásia e a mais competitiva do globo, segundo o Fórum Econômico Mundial. Localizada no Sudeste Asiático, Cingapura tem hoje o 4° maior PIB per capita do planeta e ostenta com orgulho a segunda posição no ranking dos lugares mais fáceis para se fazer negócios do Banco Mundial.

A história de sucesso dessa ex-colônia britânica não é nova. Nascida em 1965, ao se separar da Malásia, a cidade-Estado rapidamente deixou para trás o passado pobre. Apostou na industrialização para crescer e soube se adaptar aos tempos, quando a concorrência chinesa chegou com força. Trabalhou para se transformar no quarto maior centro financeiro do mundo e atrair empresas de todas as nacionalidades. Atualmente, abriga 7 mil multinacionais, 60% delas com sua sede global ou regional no país.

Mas não para por aí. Se há uma obsessão em Cingapura, ela é pelo planejamento. E as próximas metas já estão traçadas: o país quer se tornar um hub de tecnologia na Ásia. Inovação aberta, investimento em pesquisa, fomento a startups e treinamento para os profissionais do futuro misturam-se em uma receita para garantir que o país chegue em forma a um mundo dominado pela indústria 4.0, inteligência artificial, internet das coisas e 5G.

Não é uma promessa vazia. Cingapura há anos coleciona iniciativas para avançar na transformação digital. Entre 2016 e 2020, o país terá investido US$ 13,9 bilhões em pesquisa e desenvolvimento. Das cem maiores empresas de tecnologia do mundo, 80 estão no país. A ilha abriga ainda 4 mil startups. As iniciativas para atrair essa turma acabam de ganhar um reforço. No final de junho, o governo de Cingapura anunciou um plano para criar 10 mil empregos voltados para a área de tecnologia nos próximos três anos, com novas vagas em engenharia, desenvolvimento de software e de produtos, além de cargos em finanças e inovação. Para tirar o programa do papel, criou o escritório Digital Industry Singapore (DISG). Ele será responsável por consolidar os esforços de várias instituições públicas para atrair investimentos, apoiar negócios locais e trabalhar com a indústria para criar políticas para o futuro. No lançamento do programa, o ministro de comunicações, S. Iswaran, resumiu a estratégia: “Nosso objetivo é construir uma economia onde todo negócio é empoderado digitalmente, todo trabalhador é capacitado digitalmente e cada cidadão está digitalmente conectado”.


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O DISG já decola com algumas parcerias de peso. Está ajudando, por exemplo, na construção da nova sede do Grab, aplicativo de transporte, o primeiro decacórnio do Sudeste Asiático, avaliado em US$ 14 bilhões. O prédio da empresa, fundada por Tan Hooi Ling e Anthony Tan, irá abrigar 3 mil funcionários e o maior centro de pesquisa e desenvolvimento da empresa de mobilidade. O DISG também está em contato com outras agências governamentais para auxiliar a startup a encontrar profissionais capacitados em ciência de dados e inteligência artificial. Em outra frente, apoiou o lançamento, em julho, da incubadora da SAP no país, a SAP.iO. “A revolução digital é a nova revolução industrial. As sociedades que dominarem as novas tecnologias terão enormes oportunidades econômicas”, afirma Vivian Balakrishnan, ministro das Relações Exteriores de Cingapura. “Precisamos nos assegurar de que não iremos perdê-la.”

Disciplina e rigor no planejamento, Cingapura já provou ter. Lá, nada é por acaso. Nem as plantas do canteiro central na avenida que liga o aeroporto ao centro da cidade-Estado. Elas surgiram praticamente junto com o país, quando ele ainda era uma pequena cidade portuária, em uma ilha sem recursos naturais, e que perseguia a ingrata tarefa de cair nas graças dos investidores internacionais. O então primeiro-ministro, Lee Kuan Yew (1923-2015), a grande figura política da história do país, decidiu transformar Cingapura em uma cidade coberta de verde. A ideia era a de que, sendo mais arborizado e limpo, seria capaz de se diferenciar de seus vizinhos e conquistar o investimento necessário para o crescimento da economia. A estratégia continua presente até hoje. Duas das principais atrações turísticas do país envolvem a flora: o jardim botânico e o parque Gardens by the Bay, o atual cartão-postal de Cingapura. Além do verde, Lee apostou no inglês para atrair os gringos, tornando o idioma a língua franca do país. Pelas ruas de Cingapura, escutam-se ainda o chinês, o malaio e o tâmil (do sul da Índia), representantes das principais etnias desse caldeirão de culturas que é a ilha. Junto a outras iniciativas, essas medidas impulsionaram os negócios e fizeram o país decolar. De 1960 a 1980, o PIB aumentou 15 vezes.

Estrela ascendente

Na cruzada para sair na frente na economia digital, uma das protagonistas em Cingapura é a Agência para Ciência, Tecnologia e Pesquisa (A*Star, na sigla em inglês). O A* é uma brincadeira com a maneira como os professores representam a nota máxima no país. O órgão tem como objetivo fomentar pesquisas, especialmente aquelas que possam resultar em descobertas com aplicações comerciais. Ela faz a tão almejada (e muitas vezes frustrada) ponte entre a academia e a indústria. “A inovação aberta é o meio mais eficiente e escalável de criar mercado e crescer”, afirma Raj Thampuran, conselheiro da A*Star.

Criada em 2002, a agência tem feito jus ao nome. Em 2018, trabalhou em 2 mil projetos de pesquisa e desenvolvimento com empresas e agências de todo o mundo. Foi eleita este ano pela Reuters a quinta mais inovadora instituição de pesquisa pública do globo. Emprega atualmente 5,2 mil profissionais em 20 órgãos de pesquisa em biociência, física e engenharia. Conta ainda com uma aceleradora, uma incubadora e um cobiçado programa de bolsas, que, em 17 anos, já formou 1,5 mil Ph.Ds.

Grande parte das inovações da A*Star até hoje é da área de saúde. Em 2003, por exemplo, durante a epidemia de síndrome respiratória aguda grave (SARS), cientistas da agência, em parceria com o laboratório suíço Roche, desenvolveram um teste para o diagnóstico rápido da doença. Pesquisas mais recentes do Instituto do Genoma de Cingapura usaram sequenciamento de DNA e algoritmos sofisticados para analisar comunidades complexas de bactérias que vivem no intestino humano. O projeto irá ajudar na prevenção contra o surgimento de novas cepas de superbactérias, resistentes a antibióticos. Em uma outra frente, em julho de 2019, a agência anunciou uma parceria com a ST Engineering, companhia de engenharia e defesa, entre as maiores de Cingapura, para desenvolver tecnologias inovadoras para smart cities, incluindo veículos autônomos.

A parceria com empresas na área de nutrição e beleza é outro ponto forte da A*Star. Em 2014, cientistas da agência e da Nestlé se juntaram para estudar maneiras de aprimorar o processo de extração do malte, nas fábricas da multinacional. As soluções obtidas permitiram que a empresa melhorasse sua eficiência e tornasse mais sustentáveis suas práticas. Já na área de cosméticos, um programa com a L’Oréal investiga os mecanismos de envelhecimento da pele e estuda compostos que possam combater e retardar esse processo. Os contatos da A*Star com as companhias se dão tanto individualmente quanto em consórcios, com várias empresas. Entre eles, está um aeroespacial, que envolve os maiores players do setor: Airbus, Boeing e Bombardier. Juntos, dedicam-se ao desenvolvimento de novos materiais e processos de manufatura.

Em meio a gigantes, a agência também trabalha com os pequenos. O braço comercial da A*Star, a A*ccelerate, ajuda startups a registrar patentes, fechar licenciamentos, fazer network, conhecer investidores de venture capital e dá mentorias. A aceleradora já registrou mais de 3,8 mil patentes e levantou US$ 258 milhões.

Cada um no seu quadrado

Biopolis e Fusionopolis mais parecem nomes saídos de um livro de ficção científica. Mas, em Cingapura, eles são o endereço certo para quem busca inovação. Os dois bairros concentram instituições de pesquisa públicas e privadas e centros empresariais. É entre os dois, inclusive, que ficam várias instalações da A*Star. Biopolis abriga a área de biomedicina, nutrição e beleza. Conquistou de tal forma a P&G que a multinacional americana de bens de consumo, em 2014, inaugurou lá o maior centro de pesquisa entre os privados no país. Fruto de um investimento inicial de US$ 180 milhões, ele emprega hoje 500 pesquisadores, engenheiros e Ph.Ds. O bairro caiu nas graças de colossos como DuPont, Danone e Coty. Já Fusionopolis reúne a área de tecnologia da informação e engenharia e é a casa da Lucas Film, da Canon e da Autodesk.

E vem mais pela frente. O governo de Cingapura tem planos para lançar ao menos dois novos hubs: o Jurong Innovation District e o Punggol Digital District. Em Jurong, a ideia é construir um bairro voltado à indústria 4.0, que possa contar com um ecossistema de apoio que inclua provedores de tecnologia, pesquisadores e instituições de ensino como a vizinha Nanyang Technological University. Uma vez finalizado, a expectativa é a de que ele abrigue cerca de 95 mil empregos em pesquisa, inovação e na indústria. A primeira fase está prevista para ser concluída em 2022. Já em Punggol o objetivo é criar um hub para as principais áreas em ascensão na economia digital, como cibersegurança, análise de dados e inteligência artificial — o que, nas contas do governo, pode gerar 28 mil empregos.

Como Cingapura consegue controlar tão bem seu desenvolvimento urbano, a ponto de organizar os distritos da maneira que mais lhe parece conveniente? A maior parte dos terrenos do país pertence ao governo. Em 1966, um ano após se tornar uma nação, o governo aprovou uma lei dando ao Estado o direito de comprar compulsoriamente os terrenos que quiser mediante indenização. Após anos de aquisições, em 1985, o governo tornou-se o maior proprietário de terras de Cingapura, com 76,2% total — em 1949, essa fatia equivalia a 31%. Em última instância, o Estado também é o dono dos apartamentos onde mora 82% da população. Para ter a casa própria, cingapurianos pagam ao governo um lease a juros subsidiados que lhes dá a propriedade da residência por um período de 99 anos. Cada um dos edifícios residenciais de Cingapura tem de espelhar a distribuição étnica da população. Ou seja, hoje 74,3% dos moradores devem obrigatoriamente ser de origem chinesa; 13,4%, malaia; e 9%, indiana. Segundo o governo, essa medida é tomada para garantir a convivência pacífica entre todas as culturas de Cingapura.

Apesar de o governo cingapuriano ser grande defensor da abertura comercial, a ilha está longe de ser o paraíso tropical de um liberal. Ainda que haja eleições, desde que virou um país, há pouco mais de 50 anos, Cingapura é governada pelo mesmo partido, o People’s Action Party (PAP). A homossexualidade masculina, por lei, é considerada crime. Protestos são raros, já que há limitações legais e as manifestações necessitam de autorizações. A ilha ocupa hoje a 151ª posição entre 180 países no ranking de liberdade de imprensa, elaborado pela entidade Repórteres Sem Fronteiras. O principal jornal de lá, o The Straits Times, é repleto de textos que parecem saídos dos escritórios do governo.

É o que temos (e é suficiente)

Se você ficar alguns dias em Cingapura, vai perceber que existem alguns mantras repetidos nas conversas sobre o país: a importância das áreas verdes, do planejamento e da educação. Como Cingapura não tem recursos naturais, ela só pode contar com o talento de sua população para progredir e crescer — é o que dizem os cingapurianos. “Tudo o que você come, bebe e usa em Cingapura não é daqui. Até a água temos de importar. Não há recursos naturais. O que temos é o nosso povo. O que conseguimos alcançar foi resultado de esforço e disciplina”, afirma o ministro Balakrishnan.

O foco no desenvolvimento de talentos é refletido em rankings internacionais. Na última edição do Pisa, estudo realizado pela OCDE com estudantes de 15 anos para medir a qualidade educacional de 72 países do mundo, Cingapura liderou em todas as categorias — matemática, ciências e leitura. Mas não é apenas na infância e na adolescência que se concentram os esforços do país. A preocupação com a qualificação está presente durante toda a vida profissional, principalmente num momento em que a inteligência artificial e a economia digital prometem tornar obsoletos milhares, senão milhões de trabalhadores. “Toda transformação tecnológica precisa vir de mãos dadas com a capacitação dos profissionais”, defende Chee Hong Tat, ministro sênior de Comércio e Indústria de Cingapura. “Não vamos substituir nossos cidadãos por robôs, mas sim treiná-los para fazer um trabalho diferente ou em outro setor. Assim não haverá motivo para resistir às mudanças.” E (é claro) Cingapura tem um plano para colocar isso em prática.

Boa parte dele está a cargo do Ministério das Comunicações e Informação. “Queremos fazer com que as pessoas não temam a tecnologia, e sim que se sintam empoderadas por ela”, diz Tan Li San, secretária adjunta da pasta. O ministério realiza uma série de iniciativas subsidiadas para qualificar os profissionais para a transformação digital. E não mira apenas os profissionais mais velhos. Muito do trabalho é feito em parceria com grandes empresas, como o Google. “Recebemos feedback constante dos empregadores dizendo que os jovens saem da universidade sem as capacidades necessárias para atuar no mercado de trabalho”, conta San. Há treinamentos práticos, para adaptá-los. Já os profissionais em meio de carreira podem frequentar cursos para adquirir as habilidades necessárias para navegar a economia digital. Há ainda programas voltados a profissionais bem-sucedidos, mais velhos, para ajudá-los a encontrar empregos que não exijam tanto conhecimento em tecnologia, como realizar mentoria em escolas.

Essas iniciativas ficam sob o guarda-chuva do programa TechSkills Accelerator (TeSA), lançado em janeiro de 2016. Em janeiro deste ano, ele completou 61 mil treinamentos realizados. O TeSA tem como objetivo ajudar os profissionais a aprenderem as habilidades emergentes da economia digital, em campos como data analytics, inteligência artificial, internet das coisas e cibersegurança. “Todas essas áreas novas oferecem enormes oportunidades, porém ainda não temos os talentos necessários”, diz a secretária. “Mas estamos trabalhando duro para isso.” Até hoje, a disciplina e o planejamento têm dado certo em Cingapura. Para a transformação digital, eles dobraram a aposta. O resultado cabe ao futuro revelar.

- 8 a cada 10 casas a 10 minutos de caminhada de uma estação de metrô

- 75% das jornadas no horário de pico feitas por transporte público, e 85% delas (inferiores a 20 km) completadas em até uma hora

- 90% dos moradores morando a 400 metros de um parque

- 30% dos assentos nos conselhos de administração de empresas listadas na bolsa preenchidos por mulheres

- Reduzir as emissões de gases do efeito estufa em 36% em relação aos níveis de 2005

- Reciclar 70% do lixo produzido