América Latina e África podem se beneficiar da produção de bioenergia da cana

Em livro resultado de projeto apoiado pela FAPESP, pesquisadores avaliam o potencial da fonte energética como estratégia para o desenvolvimento sustentável de países das duas regiões

Apesar de ser a energia renovável mais consumida no mundo – com participação equivalente à da energia hídrica, eólica, solar e de outras fontes renováveis somadas –, a bioenergia ainda é produzida de forma limitada frente ao potencial existente. O Brasil e os Estados Unidos, por exemplo, respondem juntos por mais de 80% da produção atual de biocombustíveis líquidos.

“Diversos países também estão usando a bioenergia, mas poderia ser muito mais. Isso dá a impressão de que a bioenergia seria uma ‘jabuticaba’, que só funciona em alguns países”, disse Luiz Augusto Horta Nogueira, pesquisador associado do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético da Universidade Estadual de Campinas (Nipe-Unicamp) e membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (BIOEN).

A fim de superar essa visão, mostrando que a bioenergia pode ser produzida de forma eficiente e proporcionar benefícios econômicos e sociais para vários outros países, Nogueira e colegas do Nipe-Unicamp e de diversas instituições do Brasil e do exterior realizaram um estudo, nos últimos cinco anos, apoiado pela FAPESP, em que avaliaram o potencial de expansão da produção de bioenergia da cana na América Latina e na África.

Os resultados do trabalho denominado Projeto LACAF, realizado no âmbito do BIOEN, foram reunidos no livro Sugarcane bioenergy for sustainable development, lançado em 14 de dezembro na sede da FAPESP.

O livro reúne 33 artigos, de autoria de 60 pesquisadores do Brasil e do exterior, em que avaliam o potencial da bioenergia da cana como uma estratégia para o desenvolvimento sustentável de países da América Latina e da África.

As duas regiões foram escolhidas porque apresentam condições muito favoráveis para produção e são estratégicas para a expansão da bioenergia no mundo. Um estudo feito pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apontou que cerca de 440 milhões de hectares de terra estariam disponíveis globalmente para serem usados para produção de bioenergia até 2050.


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Mais de 80% dessas terras estariam localizadas justamente na África e na América do Sul e Central, sendo que cerca de 50% delas em apenas sete países: Angola, República Democrática do Congo e Sudão, na África, e Argentina, Bolívia, Colômbia e, em maior parte, no Brasil, na América Latina.

“O Brasil é, de longe, o país com maior disponibilidade de terra para plantio de cana para produção de bioenergia. O país é um exemplo raro, caso atípico, de produção de bioenergia a partir da cana com alta produtividade”, disse Luis Augusto Barbosa Cortez, professor da Unicamp e coordenador do projeto, durante o lançamento do livro.

De acordo com os estudos, além do Brasil, outros países da América Latina que tiveram sucesso no cultivo da cana foram a Colômbia, a Argentina e a Guatemala.

A exemplo do Brasil, a Colômbia produz cana e etanol com alta produtividade. Por sua vez, a Argentina iniciou recentemente um programa de geração de bioenergia a partir da cana e do milho e tem atingido níveis de mistura de etanol na gasolina próximos aos do Brasil. E, paradoxalmente, a Guatemala é um grande produtor de açúcar da cana, produz e exporta etanol para os Estados Unidos e importa toda a gasolina de que necessita.

Já na África, as experiências mais bem-sucedidas ocorreram na África do Sul – que hoje é o maior produtor de açúcar da cana do continente africano –, além das Ilhas Maurício, Malawi e, mais recentemente, Moçambique.

Em comum nas duas regiões uma parcela expressiva de suas populações ainda não tem acesso à eletricidade e energia limpa para cocção de alimentos. Na África Austral, por exemplo, estima-se que 59 milhões de pessoas utilizem carvão para cozinhar – o que gera sérios problemas de saúde e ambientais, como o desmatamento. “A energia limpa para cocção na África pode ser a bioenergia”, disse Nogueira.

A demanda por etanol para cocção de alimentos na África Austral seria muito superior à voltada para o abastecimento da frota veicular da população das cidades, onde até 90% da população usa energia de baixa qualidade e em condições insalubres para cozinhar, estimam os pesquisadores. Uma família típica da região precisaria de 360 litros de etanol por ano para abastecer um fogão a etanol, calcularam.

“A produção de etanol para cocção já foi tentada em alguns países da África, como em Moçambique, mas não foi adiante porque faltou combustível. Mas se tiver disponibilidade de etanol para essa finalidade com certeza o mercado vai absorver a produção”, disse Nogueira.

Os pesquisadores estimaram que a produção de 4,1 bilhões de litros de etanol de cana e de 2,7 terawatt-hora (TWh) de eletricidade por ano em Moçambique geraria 3,3 milhões de empregos e aumentaria em 28% o Produto Interno Bruto (PIB) do país africano.

Para produzir essa quantidade de combustível e de eletricidade seria necessário cultivar cana em 600 mil hectares, o que corresponde a menos de 3% da terra disponível para plantação de cana no país africano, afirmaram.

“Há terra adequada e disponível suficiente no país para expandir a produção de cana-de-açúcar, sem prejudicar outros usos, como a produção de alimentos e de ração animal. A visão de que a produção de bioenergia competiria com os alimentos é equivocada”, disse Nogueira.

A inclusão de pequenos produtores deve fazer parte do modelo de produção dos países que adotarem a bioenergia da cana, segundo Manoel Regis Lima Verde Leal, professor da Unicamp e um dos editores do livro, juntamente com Cortez e Nogueira.

À exceção do Brasil, da Austrália e dos Estados Unidos, no resto do mundo a cana é cultivada por pequenos produtores, em propriedades agrícolas menores do que 10 hectares. “A Índia, que é o segundo maior produtor de cana no mundo hoje, tem 5 milhões de hectares de cana plantada e 50 milhões de produtores”, disse Leal.

Participação no debate mundial

Na avaliação de Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, estudos como o realizado pelos pesquisadores do projeto LACAF têm contribuído para inserir a pesquisa em bioenergia feita no Estado de São Paulo na discussão mundial sobre a sustentabilidade da bioenergia da cana.

Há menos de uma década o espaço dos pesquisadores brasileiros no debate mundial sobre esse tema era muito menor do que é hoje. “Estudos como esse contribuem para que os pesquisadores da área em São Paulo participem e até mesmo liderem a discussão mundial sobre quais são as condições necessárias para se produzir bioenergia a partir da cana em grande escala em outras regiões do mundo”, disse Brito Cruz.

Prestes a completar 10 anos – em 2019 –, o BIOEN já resultou em mais de mil publicações. O impacto dos trabalhos publicados fez com que, em 2013, pesquisadores ligados ao programa fossem convidados a coordenar um estudo da sustentabilidade da bioenergia global para o Comitê Científico para Problemas do Ambiente (Scope, na sigla em inglês) – agência intergovernamental associada à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

“A realização desses estudos têm realmente ajudado a projetar os resultados da pesquisa sobre bioenergia em São Paulo nos fóruns mundiais sobre o tema”, disse Gláucia Mendes Souza, professora do IB-USP e membro da coordenação do BIOEN.